fevereiro 27, 2012

"Eu estou"


Quando pensamos no caos interno que nos governa e que nos impulsiona universo afora, uma pergunta surge inevitavelmente. Por quê? Com que objetivo? Essa expressão é traduzida, na linguagem popular, para “Qual o sentido da vida?”. Nietzsche chamou a esse desejo de conhecer, vontade de verdade. Todo indivíduo erige para si um conjunto de valores que ininterruptamente o definem enquanto Ser, e aí encerra sua verdade. Sou cristão, sou socialista, sou ambientalista, sou bactéria, sou anarquista, ou, o mais comum, sou capitalista. O leitor, no momento em que lê este texto, analisa o que eu escrevo e compara a sua visão de mundo. Se gostar do texto, provavelmente criará meios de vinculá-lo à sua própria realidade. Se não, buscará meios, a partir daquilo que considera “verdade”, de criticar meu escrito. Em probabilidade, partindo dessas duas premissas, eu teria cem por cento de chance de obter “verdade” sobre o conjunto de meus leitores.

Assim, todo ser humano tem necessidade de verdade. Hoje, considera-se “verdade” o conhecimento científico. Outrora, era o conhecimento religioso que detinha o caráter de verdade. Em suma, verdade, lato sensu, é o reflexo daquilo que uma sociedade caracteriza como sendo seu “bem maior”. Um conhecido músico brasileiro, Tom Zé, relatou que seu avó, ao ver o Sputnik conquistar o espaço, pontuou: “É o fim do capitalismo”. Infere-se daí que o velho acreditou que era o fim da era do capital (HOBSBAWN), da verdade do capital, ou seja, da verdade vigente. O velho pode até ter errado em sua previsão, porém, a partir de sua frase, podemos perceber como um sistema dito indelével é frágil. Naquele dia, sabe-se, americanos em pânico escondiam-se em seus abrigos nucleares, corriam aos supermercados para fazerem provisões ou mesmo dirigiam-se à Igreja mais próxima, esperando um ataque russo do tipo “Star Wars”.

George Orwell, num episódio análogo, causou um pandemônio em NY ao ler trechos adaptados do seu livro “A guerra dos Mundos” ao vivo no rádio. Dois acontecimentos “banais” que ilustram bem quão frágeis são nossas “verdades”. Se o leitor ainda não estiver convencido, peço que retorne à Era Jurássica, bem no dia da queda do meteoro, no México, que extinguiu os grandes répteis. Um antigo desenho animado derivado do filme “De volta para o futuro”, certa vez, lembro, visitou este dia fatídico. A visão de um meteoro daquela monta vindo em sua direção é uma experiência aterradora e bastante reveladora: FUDEMO-NOS! Utilizando argumentos bem mais refinados, Nietzsche procurou demonstrar que a verdade, strictu sensu, nada mais é que uma ilusão. A verdade seria, afirma ele, a maior das nossas ilusões.

Hoje não podemos asseverar que a menor distância entre dois pontos é uma reta, ou o que são precisamente os números primos. Um professor da UFAC vai ainda mais longe. Ele diz: “quem é que me prova que 4 dividido por 2 é realmente 2:” Os nerds da computação já perceberam há algum tempo que há apenas duas “verdades” matemáticas: 0 e 1. Ser ou não ser. Sim e não. True and False. Os números binários são hoje a plataforma, na acepção ampla do termo, de todo nosso conhecimento. Desde o computador no qual digito, até a energia elétrica que o alimenta, tudo está nas mãos dos benditos (ou malditos?) binários. No Google, que substitui nossa “intuição”, na Wikipédia, que substitui nossa “inteligência”; no míssil que chega e aniquila, ou no governo que chega e tiraniza, ou mesmo na Banda Deja vu, lá estão os binários. As ferramentas vão remodelando a modernidade.

Diz-se que certa vez um interlocutor pediu a Sócrates que lhe dissesse uma verdade. O gênio retrucou: Que é a verdade? Os tiroteios nas escolas, os professores enterrados nos quintais, os helicópteros da PM abatidos, os jovens negros executados, o Lula que não sabe de nada, nada mais são do que o reflexo desse mal estar em relação a uma modernidade órfã de verdades (ou valores?) absolutas. Não que tenhamos inventado a violência, pois a Inquisição espanhola me desmentiria, longe disso. Nós, pelo contrário, a banalizamos. Observo, en passant, comentários sobre crimes hediondos e não percebo mais aquele “ar” de indignação. O que percebo, pelo contrário, é um medo mesclado com a certeza da inépcia dos poderes públicos. “Tem que apodrecer na cadeia”, “tem mais é que matar”, “a salvação é mudar a legislação”, etc. Essas cenas macabras e cada vez mais corriqueiras do cotidiano nos lembram diuturnamente a morte e sua inevitabilidade, esta sim um fato. Ao pensar na morte, e agora fecho o ciclo, pensamos, por associação, no sentido da vida. E aí atribuímos “nosso” sentido à vida, sequiosos de ilusão que estamos.

Gastamos mais tempo significando nossa vida do que propriamente vivendo-a. Começamos por um nome, depois um sobrenome. Então, a certa idade, dão-nos um número, cadastrando-nos. Escola, faculdade, cursos profissionalizantes. Depois, para participar da sociedade propriamente dita - a capitalista - vamos a seus multiplicadores (bancos, comércios, administradoras de cartões, etc.) e efetuamos negócios. O termo negócio (do grego) significa “negação do ócio”, da criatividade do ócio mais precisamente. Para os gregos o ócio não era necessariamente algo ruim, pois é nesse período que exercitamos o logos, daí denominarem os mercantilistas, pejorativamente, negociantes, ou seja, negadores do ócio. Hoje é atribuído ao negociante um significado inversamente proporcional ao dos gregos e, parafraseando Dinho Ouro Preto, “a gente se perde no meio de tanto medo de não conseguir dinheiro para comprar sem se vender”.

A vida moderna, alicerçada sobre os valores contemporâneos, transformou-se numa selva repleta de meias-verdades misturadas a mentiras inteiras. E a temperatura aumentando, “O Infalível” à irresponsabilidade exortando, o Edir Macedo relinchando, O Lula viajando, o clima mudando e ninguém ligando. Este é o país dos “caras” (o velho e infalível apelo à vaidade, o negão sabe!), elogio que nos custou bilhões para o FMI e um bocado de propina para os excelentíssimos. Este é o país dos,“eu não fiz nada”, “eu não sei de nada”, “homens incomuns”, “calotes governamentais”, “cuecas e maletas pretas”, “chacinas mil”, onde o brasileiro amiúde exclama, tal qual o impagável Macunaíma*: AI, QUE PREGUIÇA!

• Mário de Andrade. O disposto acima se aplica também a quem inicia leitura pelo final do texto e o que é pior, acha que entende, como um dos que me laureou, nesta mesma paty comunidade, com o seguinte comentário: EU NÃO LI O LIVRO, MAS ENTENDO (...) o restante é irrisório.


#Fz!